Justiça, medicamentos e o direito à vida: a história de Deborah
Para a jovem Deborah Camilly Gonçalves, a decisão judicial que determinou ao poder público o fornecimento de um remédio de alto custo para que ela tratasse uma doença rara representou, muito além da melhora de suas condições de saúde, o próprio direito de permanecer viva.
Deborah tem mucopolissacaridose tipo 1 (MPS1), a variação mais grave de uma doença progressiva e degenerativa, também conhecida como síndrome de Hurler-Scheie, com incidência média de um caso para cada 130 mil nascimentos. Segundo a dona de casa Mércia Alves Barbosa, mãe de Deborah, o diagnóstico só foi realizado quando ela completou três anos de idade, após várias consultas inconclusivas com diversos especialistas de Brasília.
“Quando o médico fez o primeiro diagnóstico de MPS1, ele explicou que a doença era rara, não havia tratamento disponível e que eu deveria só aguardar o dia de Deus levar”, relembra Mércia. Mas a dona de casa decidiu não aguardar: descobriu que uma médica do Hospital Universitário de Brasília havia iniciado um tratamento com o uso da laronidase, medicamento produzido nos Estados Unidos.
A descoberta do remédio adequado ao caso de Deborah, contudo, não significou alívio imediato: a laronidase – que não era fornecida pelo Sistema Único de Saúde (SUS) – tem um custo de aproximadamente R$ 2 mil por ampola. O tratamento de Deborah exige a aplicação de 11 ampolas a cada 15 dias, o que significa um valor mensal de R$ 44 mil.
Com o apoio do Instituto Vidas Raras, entidade não governamental que trabalha em prol de pacientes com mucopolissacaridose, Mércia buscou a Justiça do Distrito Federal para garantir que sua filha pudesse obter o tratamento. Seis meses depois, o juiz determinou que o poder público arcasse com as despesas. Só depois da decisão judicial foi que Deborah conseguiu, pela primeira vez, utilizar a medicação.
Caminho judicial
Sem o tratamento, a expectativa de vida média de pacientes com MPS1 é de oito a dez anos; com a medicação – que não representa uma cura, mas permite o controle da progressão da doença –, Deborah já chegou aos 15 anos.
Para uma família sem condições financeiras, que depende de um tratamento de mais de R$ 40 mil mensais, a intervenção do Poder Judiciário significou, de forma concreta, a diferença entre a vida e o luto. Em virtude de quadros semelhantes, muitas pessoas procuram o auxílio da Justiça para ter acesso a tratamentos de alto custo, medicamentos não oferecidos pelo SUS ou apenas para conseguir direitos básicos de saúde, como um simples exame.
Em 2018, a Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu, sob o rito dos recursos repetitivos, uma questão central para a saúde pública brasileira: a obrigatoriedade de o poder público fornecer medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS (Tema 106).
O relator do recurso repetitivo, ministro Benedito Gonçalves, apontou no julgamento que a Constituição Federal, em seu artigo 196, estabelece que a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem a redução do risco de doença, além do acesso igualitário e universal a ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
O ministro lembrou ainda que, conforme o artigo 19-M da Lei 8.080/1990 (que regulamenta o SUS), a assistência terapêutica integral consiste, entre outras garantias, na oferta de medicamentos e produtos de interesse para a saúde.
Com base na Constituição, na legislação ordinária e na jurisprudência do STJ, a Primeira Seção fixou a tese de que constituiu obrigação do poder público fornecer medicamentos não incorporados pelo SUS, desde que cumpridos, de forma cumulativa, três requisitos: a comprovação, por meio de laudo médico, da necessidade do remédio, bem como da ineficácia dos eventuais fármacos fornecidos pelo SUS; a incapacidade financeira de arcar com o custo do medicamento prescrito; e a existência de registro do medicamento na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Interrupções
Foram exatamente esses critérios – incapacidade financeira, laudo médico e registro na Anvisa – que permitiram à família de Deborah o acesso aos medicamentos pela via judicial em 2007, muito antes da fixação da tese pela Primeira Seção. Depois da intervenção do Judiciário, o desafio da família passou a ser outro: obter regularmente a laronidase, já que a medicação costuma faltar em intervalos periódicos na rede pública de saúde do Distrito Federal.
“Durante todos esses anos, é comum receber o remédio por seis meses e ver a laronidase faltar por outros seis meses. Normalmente, o governo diz que não tem dinheiro para comprar. Quando falta, a doença tem um avanço grave, aí prejudica alguma coisa e não tem como reverter, infelizmente. A síndrome vai atingindo olhos, rins, coração” – lamenta Mércia.
Com o uso regular da medicação, Deborah tem conseguido enfrentar o desafio diário de levar uma vida simplesmente normal: está matriculada no quarto ano do ensino fundamental, gosta de se maquiar e consegue, com o auxílio de uma instituição em Planaltina (DF), realizar o sonho de dançar balé, mesmo dependendo de uma cadeira de rodas.
“Minha comida favorita é arroz, frango e batata frita. Nas horas livres, gosto de ver vídeos no YouTube e usar o Instagram”, resume a própria Deborah, como uma típica adolescente.
Esperança renovada
Após anos de interrupções sazonais no recebimento da medicação no Distrito Federal, Mércia obteve, em outubro de 2018, sentença da Justiça Federal que obrigou a União a fornecer, por meio do SUS, a laronidase ou outro substituto legal que venha a ser incorporado em seus protocolos.
Tal como o STJ ao fixar a tese no recurso repetitivo, o magistrado também considerou aspectos constitucionais: a dignidade da pessoa humana, a inviolabilidade do direito à vida e o direito social à saúde.
Para Mércia, a nova decisão judicial representa a esperança de que, finalmente, o tratamento de sua filha não seja mais interrompido e Deborah, daqui para a frente, só se preocupe em estudar, dançar balé e acessar sua rede social favorita.
“Meu sonho é ter sempre a medicação. Mas sei que é difícil”, projeta Mércia.
Fonte: STJ